Memória muscular
Adriana Calcanhotto
Sentada na sala de espera do médico oculista. Munida de paciência. Desde
criança isso, passar de vez em quando uma tarde entre aplicações de colírios
que dilatam as pupilas até a claridade ficar inteiramente insuportável. Senta
na sala de espera para o colírio agir. Volta para a sala do médico. Volta para
a penumbra da sala de espera e seus lindos livros de arte que ela sabe que
estão ali mas não consegue mais ver. “Sacanagem” do Doutor, isso. Ali também as
revistas semanais e a uma pilha de “National Geographic” com suas tribos
distantes e mulheres de peito caído que tão lindos poemas são capazes de
alimentar. Restam os fones de ouvido, mas tem aflição de, não enxergando, não
ouvir o mundo à sua volta. Resigna-se então há anos a ouvir a secretária
marcando e desmarcando consultas, “entendo, hoje o trânsito está parado”,
“entendo, sua avó morreu de novo”, enquanto a rádio ligada baixinho no canal
de música erudita é impedida de ser ouvida.
No sofá da sala de espera agora só percebe vultos, no outro sofá, à sua
frente. Ouve ruídos que vêm de um vulto que espera já há mais tempo,
folheando grossos livros de arte, e deseja que falte luz no consultório. Outros
vultos entram e saem por portas, sapatos de mulher, salto médio, chão de
mármore, andar duro, de mal com a vida, perfume doce demais, em total demasia.
Range uma porta. De novo na sala do médico e de volta à sala de espera. No
canto do sofá lateral, onde não é passagem, sentada, também à espera, a morte
de alguém. Como pode ela saber que é a morte de alguém se não está enxergando
coisa alguma? Talvez por isso mesmo? Terá vindo buscá-la, a ela que não está
enxergando, que covardia, ou ao Doutor ou à moça da limpeza? Não move-se a
morte; sentada espera, mas mesmo sem enxergar nada é possível ver que está viva
e que não tem pressa, nem braços nem pernas cruzados, no sofá lateral.
Última parada na sala do médico e está liberada para voltar para casa e
passar o resto do dia no escuro até o próximo amanhecer, se houver. A
secretária preenche o cheque e põe o dedo no lugar da assinatura, para ajudar a
localizar. Assina usando apenas a memória muscular, levanta-se e vai em direção
à porta. Ouve da secretária, “querida, aí é o banheiro, a porta de saída é por
aqui, lembra?”. Jamais deu-se por vencida, desde os primórdios das
cansativas visitas ao oculista e dispara irônica: “sei que é o banheiro,
poderia usá-lo, por favor?”. Mentira, achou que estava finalmente indo embora.
Mas aproveita porque ao sair do banheiro poderá ver se a morte continua ali, se
faz algum movimento no sentido de levantar-se também ou coisa que o valha.
Saindo do banheiro, não que vá enxergar propriamente, mas saberá com certeza se
o vulto gelado segue ou não ali. Será a última vez em que estará de frente para
o sofá lateral, antes de virar-se de costas, para a saída. “Olha-se” no
espelho por condicionamento. Tudo está igual e no mesmo lugar, sim, na sala
de espera, quando abre a porta e sai. A secretária muito gentilmente
acompanha-a até o elevador e aperta o botão indicando que a paciente que não tem
coragem de virar-se e olhar para trás pretende descer. Como das outras vezes a
secretária recomenda que “da próxima venha acompanhada, é mais confortável e
seguro”. Agradece com um sorriso mas sabe que jamais pedirá a companhia de
alguém para tarefa tão sem glamour, sempre foi assim desde que não precisou
mais da mãe para marcar e levá-la às consultas. Não gosta de tomar o tempo
alheio. Sabe que receber ajuda significa fomentar de volta a raiva de quem foi
ajudado. Quando enxerga, adora ler Shakespeare. Não está vendo mas sabe que
tem mãos, pés, ouvidos e detesta parecer frágil. Usa a técnica de chegar à
calçada, plantar-se com o braço direito esticado até que um táxi livre pare
para recolhê-la. Deu certo até aqui, deverá funcionar hoje também. Ecoa em
seu ouvido o “da próxima” convicto da secretária, acha engraçado que ela possa
dar uma garantia dessas sem pensar no que está dizendo. Estaria a morte
esperando por ela, secretária, e pela bala perdida na descida do ônibus? Teria
a morte embarcado no táxi, que demorou mas afinal apareceu? Impossível saber,
desta vez a paciente embarcou no banco da frente. Sente-se mal, nunca teve medo
da morte mas também nunca cogitou estar sem condições de olhá-la nos olhos,
fosse para dizer “vamos” ou “ah não, agora não vai dar, tô ocupada, não dá
tempo no momento, passa aí uma outra hora”. Assim desprevenida, fingindo que
está enxergando, não vale. No táxi parado no trânsito parado, sem um palmo
adiante, não tem como escapar de coisa alguma que não as suas idealizações infantis
sobre o tal encontro de certo dia, ou noite, que sempre fantasiou acontecer “de
igual para igual”. Quando enxerga adora ler Shakespeare, mas parece que não
entende grande coisa. Gostaria de ter convicção de que aquela morte lhe
pertence, acostumou-se a estar no controle, odiaria um engano fatal,
consideraria injusto por alimentar crenças de que a natureza lida com algum
tipo de senso de justiça. Talvez tenha comprado Shakespeare para dar função à
estante e impressionar as visitas. Em todo caso, entra em casa e, usando a
memória muscular, liga o computador e deixa já pronta a coluna para o jornal do
domingo.
Observação: grifos do blog
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