MARIA RAMIM

Maria Ramim

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

QUANDO A VISÃO DEIXA DE SER O ESTIMULO PREDOMINANTE

Memória muscular
Adriana Calcanhotto
Sentada na sala de espera do médico oculista. Munida de paciência. Desde criança isso, passar de vez em quando uma tarde entre aplicações de colírios que dilatam as pupilas até a claridade ficar inteiramente insuportável. Senta na sala de espera para o colírio agir. Volta para a sala do médico. Volta para a penumbra da sala de espera e seus lindos livros de arte que ela sabe que estão ali mas não consegue mais ver. “Sacanagem” do Doutor, isso. Ali também as revistas semanais e a uma pilha de “National Geographic” com suas tribos distantes e mulheres de peito caído que tão lindos poemas são capazes de alimentar. Restam os fones de ouvido, mas tem aflição de, não enxergando, não ouvir o mundo à sua volta. Resigna-se então há anos a ouvir a secretária marcando e desmarcando consultas, “entendo, hoje o trânsito está parado”, “entendo, sua avó morreu de novo”, enquanto a rádio ligada baixinho no canal de música erudita é impedida de ser ouvida.
No sofá da sala de espera agora só percebe vultos, no outro sofá, à sua frente. Ouve ruídos que vêm de um vulto que espera já há mais tempo, folheando grossos livros de arte, e deseja que falte luz no consultório. Outros vultos entram e saem por portas, sapatos de mulher, salto médio, chão de mármore, andar duro, de mal com a vida, perfume doce demais, em total demasia. Range uma porta. De novo na sala do médico e de volta à sala de espera. No canto do sofá lateral, onde não é passagem, sentada, também à espera, a morte de alguém. Como pode ela saber que é a morte de alguém se não está enxergando coisa alguma? Talvez por isso mesmo? Terá vindo buscá-la, a ela que não está enxergando, que covardia, ou ao Doutor ou à moça da limpeza? Não move-se a morte; sentada espera, mas mesmo sem enxergar nada é possível ver que está viva e que não tem pressa, nem braços nem pernas cruzados, no sofá lateral.
Última parada na sala do médico e está liberada para voltar para casa e passar o resto do dia no escuro até o próximo amanhecer, se houver. A secretária preenche o cheque e põe o dedo no lugar da assinatura, para ajudar a localizar. Assina usando apenas a memória muscular, levanta-se e vai em direção à porta. Ouve da secretária, “querida, aí é o banheiro, a porta de saída é por aqui, lembra?”. Jamais deu-se por vencida, desde os primórdios das cansativas visitas ao oculista e dispara irônica: “sei que é o banheiro, poderia usá-lo, por favor?”. Mentira, achou que estava finalmente indo embora. Mas aproveita porque ao sair do banheiro poderá ver se a morte continua ali, se faz algum movimento no sentido de levantar-se também ou coisa que o valha. Saindo do banheiro, não que vá enxergar propriamente, mas saberá com certeza se o vulto gelado segue ou não ali. Será a última vez em que estará de frente para o sofá lateral, antes de virar-se de costas, para a saída. “Olha-se” no espelho por condicionamento. Tudo está igual e no mesmo lugar, sim, na sala de espera, quando abre a porta e sai. A secretária muito gentilmente acompanha-a até o elevador e aperta o botão indicando que a paciente que não tem coragem de virar-se e olhar para trás pretende descer. Como das outras vezes a secretária recomenda que “da próxima venha acompanhada, é mais confortável e seguro”. Agradece com um sorriso mas sabe que jamais pedirá a companhia de alguém para tarefa tão sem glamour, sempre foi assim desde que não precisou mais da mãe para marcar e levá-la às consultas. Não gosta de tomar o tempo alheio. Sabe que receber ajuda significa fomentar de volta a raiva de quem foi ajudado. Quando enxerga, adora ler Shakespeare. Não está vendo mas sabe que tem mãos, pés, ouvidos e detesta parecer frágil. Usa a técnica de chegar à calçada, plantar-se com o braço direito esticado até que um táxi livre pare para recolhê-la. Deu certo até aqui, deverá funcionar hoje também. Ecoa em seu ouvido o “da próxima” convicto da secretária, acha engraçado que ela possa dar uma garantia dessas sem pensar no que está dizendo. Estaria a morte esperando por ela, secretária, e pela bala perdida na descida do ônibus? Teria a morte embarcado no táxi, que demorou mas afinal apareceu? Impossível saber, desta vez a paciente embarcou no banco da frente. Sente-se mal, nunca teve medo da morte mas também nunca cogitou estar sem condições de olhá-la nos olhos, fosse para dizer “vamos” ou “ah não, agora não vai dar, tô ocupada, não dá tempo no momento, passa aí uma outra hora”. Assim desprevenida, fingindo que está enxergando, não vale. No táxi parado no trânsito parado, sem um palmo adiante, não tem como escapar de coisa alguma que não as suas idealizações infantis sobre o tal encontro de certo dia, ou noite, que sempre fantasiou acontecer “de igual para igual”. Quando enxerga adora ler Shakespeare, mas parece que não entende grande coisa. Gostaria de ter convicção de que aquela morte lhe pertence, acostumou-se a estar no controle, odiaria um engano fatal, consideraria injusto por alimentar crenças de que a natureza lida com algum tipo de senso de justiça. Talvez tenha comprado Shakespeare para dar função à estante e impressionar as visitas. Em todo caso, entra em casa e, usando a memória muscular, liga o computador e deixa já pronta a coluna para o jornal do domingo.
Observação: grifos do blog

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