Francisco Bosco
Emmanuel Behr, amigo de Proust, disse
sobre ele: 'Que ninguém jamais se comunica com ninguém não era para Proust uma
hipótese provável, mas um artigo de fé'
Mais de um leitor já observou que o volume 5 da “Recherche”, “A
prisioneira”, poderia, com mais forte razão, chamar-se “O prisioneiro”. Nessa
versão amorosa da dialética do senhor e do escravo, o amante ciumento, ao
procurar controlar todos os movimentos — físicos, desejantes e efetivos — de
sua amada, torna-se ele mesmo cativo de um labirinto psíquico sem saída, onde é
o próprio desejo de verdade que não cessa de engendrar suspeitas, que por sua
vez se multiplicam ad
infinitum, e acaba, paradoxalmente, por definir
a experiência amorosa em jogo como a de uma grande mentira. Que não se pode
deduzir, dessa experiência particular, uma verdade geral sobre o amor (o que
quer que seja isso), é o que procurarei indicar aqui.
Emmanuel Behr, amigo de Proust, disse sobre ele: “Que ninguém jamais se
comunica com ninguém não era para Proust uma hipótese provável, mas um artigo
de fé”. Com efeito, essa impossibilidade de comunicação atravessa e define a
experiência do narrador com sua amada, Albertine (a Capitu da literatura
francesa). Durante todo o tempo, o narrador lhe esconde suas verdadeiras (até onde
ele mesmo pode conhecê-las) ideias e intenções, procurando com isso fortalecer
sua posição no xadrez amoroso, e considera que, reciprocamente, Albertine
também não cessa de lhe esconder a verdade. Esse desencaixe se intensifica a
ponto de engolir toda a experiência. A relação amorosa entre o narrador e
Albertine se revela uma ausência de relação, no mesmo sentido em que Lacan
dizia não haver relação sexual: ambos agem apenas de modo a instrumentalizar o
outro para servir a seu próprio narcisismo ou demais interesses individuais
(lembrando que só conhecemos Albertine pela visão do narrador).
A se acreditar no amigo de Proust, devemos submeter o “artigo de fé” do
grande escritor ao crivo da máxima nietzschiana, aqui adaptada: todo juízo
sobre o amor é antes um juízo que o amor faz sobre quem o profere. Assim, a
impossibilidade de comunicação de que aqui se trata seria antes consequência de
uma certa forma de experimentar o amor (determinada por lógicas nada racionais)
do que um juízo racional e desinteressado sobre ele. Que forma é essa, e por
que ela leva ao narcisismo entrincheirado do narrador e de sua amada?
O narrador é possuído por um desejo de controle da totalidade das
experiências de sua amada. Ele condiciona a verdade da relação à revelação da
verdade absoluta sobre o outro. Desejando conhecer todas as experiências dela,
e ao mesmo tempo não admitindo que ela possa ter experiências que lhe
desagradem (moral ou narcisicamente), acaba por condená-la, seja à mentira (que o torna prisioneiro de ciúmes infinitos), seja à anulação de sua
individualidade (que a torna prisioneira de seus ciúmes e, dialeticamente, esvazia o desejo do
narrador, enfastiado com um ser reduzido a reflexo de suas próprias vontades).
Estabelece-se assim um sistema onde o desejo inquisitorial de confissão
engendra mentiras exponenciais, que supostamente provam a verdade da
impossibilidade da comunicação no amor, quando são apenas o efeito de
determinada posição imaginária. Essa posição imaginária é a de um ciúme
insaciável que só encontra algum repouso nos instantes fugazes em que não se
sente ameaçado pela alteridade do outro. Não é por acaso que o narrador se
debate sem se decidir se afinal ama Albertine, pois esse amor só se manifesta
negativamente, quando a alteridade desperta seus ciúmes.
Há em tudo isso um aspecto que talvez seja indissociável do amor (pois o
seria de qualquer relação humana). Refiro-me à gangorra imaginária que faz com
que a admiração pelo outro tenda a produzir indiferença neste, e vice-versa,
fazendo da relação amorosa um jogo tenso em que se alternam as posições do
amado e do amante, e em que desejo e amor são variáveis inversamente
proporcionais — mas onde, como na gangorra real, certo equilíbrio, embora tenso
e difícil, não é impossível. Mas se a dimensão imaginária é indissociável do
amor, este não é redutível a ela. Ao contrário, talvez só se possa falar em
relação amorosa quando a alteridade do outro é acatada e sobre ela se constrói
uma obra a dois; quando a alteridade já não está mais dissolvida no Um da
paixão, tampouco caçada a todo custo pelo desejo ciumento de controle.
Em “A prisioneira”, é um mal-entendido sobre a verdade — condicionar a
verdade do outro (logo da relação) ao conhecimento e controle absolutos sobre
ele — que acaba por condenar tudo à mentira.
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