MARIA RAMIM

Maria Ramim

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

CRIAR UM FILHO

Meu filho, você não merece nada - Por: ELIANE BRUM

A crença de que a felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais preparada
eliane
Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.
Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.
Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a "injustiça" e boa parte se emburra e desiste.
Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.
Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam "felizes". Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.
É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?
Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que "fulano é esforçado" é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.
Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do "eu mereço".
Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.
A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: "Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil"? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.
Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.
Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.
Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.
Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.
O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.
Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.
Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: "Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua". Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: "Olha, meu dia foi difícil" ou "Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso" ou "Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir". Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.
Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.
Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.

sábado, 24 de janeiro de 2015

INTERCÂMBIO ENTRE GENÉTICA E INFLUÊNCIAS DO MEIO NO COMPORTAMENTO HUMANO: ESTRESSE E ANSIEDADE

24/01/2015
O respaldo da epigenética
Carmita Abdo
Não é de hoje que se discute a origem de nossas características, ações e reações, se geneticamente determinadas (inatas) ou resultado das influências do meio em que vivemos (adquiridas). Nem uma coisa, nem outra: ambas importam, o que também não é novidade. O novo, nisso tudo, é o crescente conhecimento da estreita relação entre o que é geneticamente transmitido e o que é influenciado pelo ambiente. Já se pesquisa como nosso comportamento pode ser alterado pela ação do meio sobre a expressão de nossos genes.
Epigenética é o nome que se dá ao mecanismo pelo qual ocorrem alterações nas expressões dos genes, determinadas pela interação entre constituição genética e exposição ambiental. De acordo com essa hipótese, a qual vem ganhando evidências, o estresse intenso provocaria mudanças na estrutura de uma proteína (cromatina), em regiões do cérebro (no sistema límbico, especialmente) de pessoas vulneráveis. Essas mudanças alterariam a manifestação dos genes, sem, no entanto, modificar a sequência original do DNA dessas pessoas.
Tal influência do estresse sobre a cromatina cerebral também ocorreria no início da vida, participando da determinação da capacidade de resistência/fragilidade (da criança em desenvolvimento) aos acontecimentos estressantes do dia a dia. Há fortes indícios da importância das modificações epigenéticas que ocorrem na primeira infância, determinando maior vulnerabilidade ao estresse. Em pesquisas com filhotes de camundongos, aqueles que receberam poucos cuidados maternos apresentaram comportamentos ansiosos, na idade adulta, mais frequentemente do que aqueles que tiveram alto nível de cuidados. Paralelamente a esse comportamento mais ansioso, foram observadas as alterações constitucionais descritas acima.
Mais instigantes ainda são as evidências de que os eventos estressantes podem alterar a susceptibilidade ao estresse em gerações futuras, por meio da transmissão transgeracional. De fato, animais submetidos à privação materna e que apresentam maior fragilidade ao estresse geram descendência similar.
Os mecanismos dessa transmissão transgeracional da vulnerabilidade ao estresse permanecem controversos. Apesar de já se saber que o estresse produz alterações epigenéticas em genes específicos do esperma, não se pode afirmar que essas alterações sejam a única causa dessa transmissão.
Outra causa pode ser comportamental: o cuidado materno modificado, frente à reprodução com machos previamente estressados. Mais estudos são necessários para conclusões.
Ampliando o contexto, vale lembrar que em Sexologia muito se comenta sobre a “ansiedade de desempenho” como mecanismo pelo qual uma falha isolada se torna “gatilho” para a dificuldade sexual permanente. Não conseguir obter ereção num encontro sexual pode gerar no homem insegurança, nas oportunidades futuras, o que provocará falhas sucessivas, exatamente pela ansiedade.
Frente ao que já se conhece sobre epigenética e transmissão transgeracional, evidencia-se a importância da prevenção de situações estressantes para as diversas áreas do comportamento. Para o comportamento sexual, não seria diferente. Isso reforça a ideia de educação sexual, desde os primeiros anos de vida, sem a urgência e o estresse que o “fantasma” do sexo de risco (gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis) impõe, quando esta educação se dirige a adolescentes já praticantes de sexo. Educação sexual sem estresse é um mecanismo pelo qual se evitam dificuldades sexuais na vida adulta. Vamos encarar ou continuar esperando que futuras pesquisas nos mostrem novos caminhos de prevenção às mazelas sexuais de todo tipo?
OBS.: Grifos do blog.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

QUANDO A VISÃO DEIXA DE SER O ESTIMULO PREDOMINANTE

Memória muscular
Adriana Calcanhotto
Sentada na sala de espera do médico oculista. Munida de paciência. Desde criança isso, passar de vez em quando uma tarde entre aplicações de colírios que dilatam as pupilas até a claridade ficar inteiramente insuportável. Senta na sala de espera para o colírio agir. Volta para a sala do médico. Volta para a penumbra da sala de espera e seus lindos livros de arte que ela sabe que estão ali mas não consegue mais ver. “Sacanagem” do Doutor, isso. Ali também as revistas semanais e a uma pilha de “National Geographic” com suas tribos distantes e mulheres de peito caído que tão lindos poemas são capazes de alimentar. Restam os fones de ouvido, mas tem aflição de, não enxergando, não ouvir o mundo à sua volta. Resigna-se então há anos a ouvir a secretária marcando e desmarcando consultas, “entendo, hoje o trânsito está parado”, “entendo, sua avó morreu de novo”, enquanto a rádio ligada baixinho no canal de música erudita é impedida de ser ouvida.
No sofá da sala de espera agora só percebe vultos, no outro sofá, à sua frente. Ouve ruídos que vêm de um vulto que espera já há mais tempo, folheando grossos livros de arte, e deseja que falte luz no consultório. Outros vultos entram e saem por portas, sapatos de mulher, salto médio, chão de mármore, andar duro, de mal com a vida, perfume doce demais, em total demasia. Range uma porta. De novo na sala do médico e de volta à sala de espera. No canto do sofá lateral, onde não é passagem, sentada, também à espera, a morte de alguém. Como pode ela saber que é a morte de alguém se não está enxergando coisa alguma? Talvez por isso mesmo? Terá vindo buscá-la, a ela que não está enxergando, que covardia, ou ao Doutor ou à moça da limpeza? Não move-se a morte; sentada espera, mas mesmo sem enxergar nada é possível ver que está viva e que não tem pressa, nem braços nem pernas cruzados, no sofá lateral.
Última parada na sala do médico e está liberada para voltar para casa e passar o resto do dia no escuro até o próximo amanhecer, se houver. A secretária preenche o cheque e põe o dedo no lugar da assinatura, para ajudar a localizar. Assina usando apenas a memória muscular, levanta-se e vai em direção à porta. Ouve da secretária, “querida, aí é o banheiro, a porta de saída é por aqui, lembra?”. Jamais deu-se por vencida, desde os primórdios das cansativas visitas ao oculista e dispara irônica: “sei que é o banheiro, poderia usá-lo, por favor?”. Mentira, achou que estava finalmente indo embora. Mas aproveita porque ao sair do banheiro poderá ver se a morte continua ali, se faz algum movimento no sentido de levantar-se também ou coisa que o valha. Saindo do banheiro, não que vá enxergar propriamente, mas saberá com certeza se o vulto gelado segue ou não ali. Será a última vez em que estará de frente para o sofá lateral, antes de virar-se de costas, para a saída. “Olha-se” no espelho por condicionamento. Tudo está igual e no mesmo lugar, sim, na sala de espera, quando abre a porta e sai. A secretária muito gentilmente acompanha-a até o elevador e aperta o botão indicando que a paciente que não tem coragem de virar-se e olhar para trás pretende descer. Como das outras vezes a secretária recomenda que “da próxima venha acompanhada, é mais confortável e seguro”. Agradece com um sorriso mas sabe que jamais pedirá a companhia de alguém para tarefa tão sem glamour, sempre foi assim desde que não precisou mais da mãe para marcar e levá-la às consultas. Não gosta de tomar o tempo alheio. Sabe que receber ajuda significa fomentar de volta a raiva de quem foi ajudado. Quando enxerga, adora ler Shakespeare. Não está vendo mas sabe que tem mãos, pés, ouvidos e detesta parecer frágil. Usa a técnica de chegar à calçada, plantar-se com o braço direito esticado até que um táxi livre pare para recolhê-la. Deu certo até aqui, deverá funcionar hoje também. Ecoa em seu ouvido o “da próxima” convicto da secretária, acha engraçado que ela possa dar uma garantia dessas sem pensar no que está dizendo. Estaria a morte esperando por ela, secretária, e pela bala perdida na descida do ônibus? Teria a morte embarcado no táxi, que demorou mas afinal apareceu? Impossível saber, desta vez a paciente embarcou no banco da frente. Sente-se mal, nunca teve medo da morte mas também nunca cogitou estar sem condições de olhá-la nos olhos, fosse para dizer “vamos” ou “ah não, agora não vai dar, tô ocupada, não dá tempo no momento, passa aí uma outra hora”. Assim desprevenida, fingindo que está enxergando, não vale. No táxi parado no trânsito parado, sem um palmo adiante, não tem como escapar de coisa alguma que não as suas idealizações infantis sobre o tal encontro de certo dia, ou noite, que sempre fantasiou acontecer “de igual para igual”. Quando enxerga adora ler Shakespeare, mas parece que não entende grande coisa. Gostaria de ter convicção de que aquela morte lhe pertence, acostumou-se a estar no controle, odiaria um engano fatal, consideraria injusto por alimentar crenças de que a natureza lida com algum tipo de senso de justiça. Talvez tenha comprado Shakespeare para dar função à estante e impressionar as visitas. Em todo caso, entra em casa e, usando a memória muscular, liga o computador e deixa já pronta a coluna para o jornal do domingo.
Observação: grifos do blog

UM LEGADO REVISTO

Nova biografia de Freud, escrita pela historiadora Elisabeth Roudinesco, é lançada na França
Autora, que faz palestras no Brasil em outubro, critica 'antifreudianismo' e desmonta lendas sobre criador da psicanálise
POR FERNANDO EICHENBERG, CORRESPONDENTE EM PARIS
27/09/2014

PARIS - A vida e a obra de Sigmund Freud (1856-1939), o criador da psicanálise, foram objetos de uma enormidade de estudos. Mais uma biografia, hoje, do célebre autor de “Interpretação dos sonhos” e “Totem e tabu”? Para a historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco, a escrita de seu “Sigmund Freud — dans son temps et dans le nôtre” (Sigmund Freud — em seu tempo e no nosso) foi uma “imposição”. Com acesso aos novos arquivos abertos pela Biblioteca do Congresso de Washington, nos Estados Unidos, a autora francesa mergulhou na vida e obra do biografado com a intenção de mostrar que Freud é um produto de seu tempo e, ao mesmo tempo, revelar verdades sobre as “lendas negras e douradas” edificadas sobre o personagem. O livro foi lançado este mês na França, pela editora Seuil, e tem publicação prevista no Brasil para 2015, pela Zahar.
Crítica severa de uma psicanálise a-histórica, Roudinesco condena a percepção da obra de Freud isolada do contexto de sua época, estudada como um corpus clínico à parte do mundo em que foi elaborada. Somado a isso os repetidos ataques protagonizados nos últimos 30 anos pelos “antifreudianos radicais”, hoje não se sabe mais quem é Freud, sustenta a autora em entrevista ao GLOBO em sua casa, em Paris.
Desde a primeira biografia de Freud, de autoria de Fritz Wittels, em 1924, passando pelos três volumes de “Vida e obra de Sigmund Freud”, de Ernest Jones, publicados entre 1953 e 1957 (lançados no Brasil pela Zahar), uma miríade de teses e ensaios foi produzida nos mais variados idiomas, entre os quais o título de referência “Freud: uma vida para o nosso tempo”, de Peter Gay, de 1988 (Companhia das Letras). O minucioso trabalho de 592 páginas de Roudinesco é reivindicado como a primeira biografia francesa do personagem, com uma nova abordagem e distanciamento de um Freud definido como um “conservador rebelde” e criador de uma “revolução simbólica” em um movimento que se perpetua.
Elisabeth Roudinesco será a principal convidada da “IX Jornada Bianual do Contemporâneo”, promovida pelo Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade, nos próximos dias 3 e 4, em Porto Alegre. No dia 6, estará no Rio para falar sobre “A psicanálise na situação contemporânea”, às 9h, no Instituto de Psicologia da Uerj. O Brasil, para ela, é hoje o “país mais freudiano do mundo”.

Por que Freud e este livro hoje?
A necessidade se fazia sentir ao longo de um certo tempo de renovar a abordagem de Freud. Sou o primeiro autor francês a fazê-lo, e o último de um longa série. E o primeiro a ir aos arquivos e utilizá-los de uma outra forma. É verdade também que o fim de um ciclo de ondas sucessivas de ódio a Freud, de lendas negativas, de livros negros, já faz 25 anos. Se foi muito longe no antifreudianismo, e se chegou a um ponto em que a opinião pública já estava farta de que se tratasse Freud de nazista, de incestuoso, de canalha. Era preciso restabelecer um pouco de verdade. Eu me dediquei a isto. Os psicanalistas nadam no anacronismo, na interpretação abusiva, porque para eles o contexto histórico não existe. Quis mostrar bem que Freud nasceu num mundo no qual não havia eletricidade, em que a promiscuidade de membros de uma mesma não era a mesma de hoje. Quando ele conta sua vida cotidiana, seja na “Interpretação dos sonhos” ou em outros escritos, é um dia a dia diferente de hoje. Freud foi criado numa família grande, com muitos empregados, sem água corrente. Ele vive nesta promiscuidade em que pode realmente elaborar a teoria dos substitutos. Quando ele vê suas cinco irmãs, vê sua mãe ou seu pai. Há modelos familiares que estão acabando no momento em que teoriza isto. Tive sempre a preocupação de o imergi-lo em seu contexto histórico, e de mostrar que ele e sua obra são um produto de seu tempo.
Na França, o país mais freudiano do mundo, segundo a senhora, há uma rejeição analítica da complexidade da história de Freud. Por quê?
Mais se é freudiano, menos se é histórico. Mas isto está acabando. A França foi o país da renovação da doutrina e não o da herança histórica. Gerações de psicanalistas se interessaram nos textos freudianos de forma estrutural: o corpus sem sua história. Não é um acaso se não houve biografia de Freud na França. Jones, qual seja a crítica que lhe possa ser feita, tem a preocupação da história. O mundo anglófono foi muito mais atento do que o francófono à questão de imergir Freud na história, mesmo se ainda restam como interpretações psicanalíticas. A psicanálise sendo cada vez menos forte na renovação teórica, a preocupação foi de historizar. E nos Estados Unidos, as querelas entre historiadores são muito mais importantes do que as disputas entre psicanalistas. Não é o caso na França. E também não é o caso no Brasil e na Argentina.

O argentino Emilio Rodrigué (1923-2008), primeiro biógrafo latino-americano de Freud, teve, na sua opinião, a “audácia de inventar um personagem mais próximo de um personagem de Gabriel García Márquez do que de um sábio originado da Velha Europa”. A senhora diz que cada país criou seu próprio Freud. Quem é o Freud brasileiro?
O Brasil tem esta vantagem de ser aberto a tudo. Os brasileiros são muito abertos à história da psicanálise e a todas as doutrinas, há um sincretismo. É o que foi chamado de antropofagia, este movimento que digere o que vem da Europa fazendo algo novo. Daí esta vivacidade. Embora a França seja mais forte no plano doutrinal, hoje provavelmente o país mais freudiano do mundo seja o Brasil. Porque no Brasil o ensino da psicanálise se mantém nas universidades de Psicologia, mais do que na Argentina. Mesmo que a implantação da psicanálise tenha sido feita pelos argentinos, que tiveram o golpe de gênio de implantar o kleinismo, o freudismo e o lacanismo. Mas a tradição universitária brasileira é muito forte. E o fato de que seja dividida em cidades é muito importante. Não é a mesma coisa no Rio, em Porto Alegre... E eles digeriram tudo que veio da Europa de forma antropofágica. Temos uma abertura maior no Brasil a tudo. O defeito, evidentemente, é que não há escola histórica, mas há uma tradição. Houve Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss, há uma abertura. Os brasileiros são ecléticos, e abertos a novas abordagens, enquanto na França os psicanalistas têm 25 anos de atraso em relação a sua história, infelizmente. E o dogmatismo lacaniano e psicanálitico em geral teve um papel nisso. Mas vamos chegar lá. Já o Freud brasileiro é eclético, é uma mistura de kleinismo, de lacanismo, de invenção brasileira. E neste ponto, Emilio Rodrigué colocou seu tempero. Ele faz variações em seu livro, é um romance latino-americano, se autoriza interpretações extravagantes, ,mas gosto disso, porque ao mesmo tempo há a seriedade do aparelho crítico.
A senhora muitas vezes respondeu a consecutivas iniciativas dos chamados “antifreudianos radicais”, como a tentativa de interdição de uma exposição sobre Freud em 1996, processos na justiça por difamação ou obras como “Mentiras freudianas”, de Jacques Bénesteau; “O livro negro da psicanálise — Viver, pensar e melhorar sem Freud”, organizado por Catheryne Meyer, ou “O crepúsculo de um ídolo, a fábula freudiana”, de Michel Onfray, com quem teve uma acirrada polêmica e que não tardou em atacar este seu último livro sobre Freud. O “antifreudianismo” ainda é forte?
Isto nunca acaba. Mas depois ter sido um movimento majoritário, se torna agora minoritário. Assim como os psicanalistas tiveram sua hora de glória majoritária, hoje são minoritários. Mas eles não vão desaparecer. Michel Onfray respondeu que não precisava ler este livro para saber o que havia nele. Quando se diz isso, é o fim de qualquer debate. Há anos ele recusa qualquer debate comigo, e nós nos conhecemos muito bem. Ele delirou, disse que eu o tratei de pedófilo. De qualquer forma, não é apenas em relação a Freud que ele diz qualquer coisa. Fez o mesmo sobre a Bíblia, Albert Camus, Sartre, Sade, e vai continuar. Mas num momento a verdade triunfa. Da mesma forma que caiu a Nova Filosofia, todas estas besteiras que há 30 anos nos envenenam. Foi uma corrente não universitária muito sedutora em seu início, jovem, com personalidades brilhantes. Mas que tinham como maior defeito contar qualquer coisa, como dizer que o goulag já existia em Marx e Engels. Isto é uma contraverdade histórica. E de um certo modo a França está pagando hoje por isto. Hoje, estamos na vingança dos historiadores e dos filósofos universitários contra os filósofos midiáticos não universitários. Estamos no fim da Nova Filosofia, do antifreudianismo radical. Vamos passar à herança real.
A senhora define Freud como um “conservador rebelde”. Por quê?
Sem dúvida é um conservador rebelde. Ele entrou em rebelião contra os modos de pensar majoritários de sua época. Ele é um liberal conservador, que induziu uma revolução do íntimo. É contemporâneo do socialismo, do comunismo, do feminismo, de todos os movimentos de emancipação. Mas sua característica é que retorne sempre ao Antigo, algo muito típico também de Viena e da cultura alemã. Para fazer uma revolução do íntimo, vai buscar modelos míticos na tragédia grega e não na modernidade literária, a qual, aliás, ele não entende muito bem. Ele tem este aspecto politicamente conservador, vota liberal, trabalha com os sociais-democratas em Viena, não confunde jamais o comunismo e o nazismo, mas não acredita que uma revolução social do tipo marxista vai dar certo. Ele é contemporâneo da Revolução Russa. Não é a favor das convulsões republicanas francesas. Mas seu movimento psicanalítico é aberto, com discípulos de todas as tendências, progressistas, conservadores. Ele era pela emancipação das mulheres, e contra a supressão das instituições. Há uma imagem muito justa de Freud: era favorável à morte do pai, ao regicídio, mas a favor de que se recolocasse um rei no trono. Isto é explicado em “Totem e Tabu”. Freud é regicida na condição de que reinstaure a monarquia depois de ter sido abolida. Não é republicano no sentido francês. Ele gosta muito de Paris, mas não é a favor de revoluções do tipo francês. O modelo para ele é Londres, o modelo econômico liberal inglês, e a cultura do Sul, a Itália e a Antiguidade romana.; e mais longe, a grega, e mais longe ainda, o Egito. Freud é um homem da bacia mediterrânica em seus sonhos, algo muito austríaco, entre o Norte e o Sul, e muito ligado ao modelo de monarquia constitucional. E ele é judeu, o que tem um papel considerável. Não é a favor do sionismo, à criação de um Estado judeu, prefere a diáspora, mas herdou algo desta rebelião. Para época de Freud, o inimigo é a religião. Ele é pela ciência. O que faz com que por vezes, em seu debate com o pastor Oskar Pfister (1873-1956), possa se enganar, confunde religião e fé. Mas para esta geração de homens sábios, originados do materialismo, o inimigo é o religioso. Ele tem isto em comum com Marx. Por isso é um conservador bastante singular. Ele é pela liberdade sexual, contra a pena de morte.
Um dos erros de Freud, segundo a senhora, é o de acreditar na construção de uma ciência.
Não é uma ciência, no sentido das ciências da Natureza. Ele sabia disto, por isso que abandonou o modelo fisiológico-neurológico. Mas não soube inscrever a psicanálise como uma disciplina integral na universidade. O que fez com que sempre tenha sido ensinada nos departamentos de Psicologia, Antropologia, Sociologia, Literatura e Filosofia. Teria podido fazê-lo? Não sei, talvez não. Talvez o destino da psicanálise seja o de não ser uma disciplina à parte. Mas hoje estamos novamente em um retrocesso, na ideia de que o corpo e o movimento são mais importantes do que a palavra. Mas isto não vai durar. Estamos numa encruzilhada, se foi muito longe na explicação estritamente química e orgânica do inconsciente. A psiquiatria biológica não existe mais como psiquiatria, ela é química. Há uma contestação. Quando se questiona a os resultados de Freud com seus pacientes, sua resposta é a de que a técnica psicanalítica trata as neuroses, não as psicoses. Durante trinta anos houve um reinado do “tudo químico”. Isto está acabando. Não por um retorno à psicanálise, mas como explicação demasiado totalitária, e pela rejeição dos pacientes. Freud elaborou uma clínica aplicada em seu início às neuroses. Mas eram neuroses graves. Ele mudou, a partir de 1914 percebeu a incurabilidade. Depois, o saber psicanalítico dominou toda a psiquiatria do século 20. Foi uma boa coisa. Antes do aparecimento dos psicotrópicos, era melhor ir em clínicas nas quais havia uma abordagem psicanalítica do que ser um simples sujeito de sanatório. A partir de 1945, os antigos asilos esvaziaram, foi um enorme progresso. E a ideia de combinar a cura pela palavra com medicamentos, para as psicoses, é uma bela definição. Sabemos que para um melhor tratamento da loucura são necessárias três abordagens, de meio ambiente, psíquica e medical. O problema é que mas nossas sociedades de hoje, com economias orçamentárias draconianas, não temos os meios de curar os loucos com os três meios. Então se passou ao “tudo químico”, que funciona mais rápido, mas que é catastrófico. A tripla abordagem se tornou impossível. Nas sociedades precarizadas como as nossas, os doentes mentais e os prisioneiros são muito mal tratados.
No livro, a senhora desconstrói “lendas” como as da autoanálise ou do complexo de Édipo freudianos.
Eu desfaço o complexo de Édipo. Freud não escreveu uma só linha, exceto sobre o declínio do complexo de Édipo. Falou do complexo de Édipo por tudo, mas não teorizou. A psicologia edipiana não se sustenta. O complexo de Édipo como psicologia de família não funciona. O genial é fazer crer a cada neurótico que ele é Hamlet ou Édipo em vez de um doente mental. É muito melhor ser um herói de teatro do que um simples doente mental em um sanatório. E ele não foi capaz de escrever sobre a metapsicologia. A autoanálise não existe, é uma lenda forte e inventada. O próprio Freud disse que era a “sua autoanálise”, mas não é uma autoanálise, e sim uma passagem pelo erro para se alcançar a verdade. A correspondência com Wilhelm Fliess (1858-1928) não é uma autoanálise, mas uma errância de sábios. Ele errou no irracional para conseguir elaborar uma doutrina que sai da fisiologia. A “pulsão de morte”, um dos momentos fortes de Freud, não começa em 1919, mas em 1914, quando ele se pergunta, para introduzir o narcisismo, por que nos autodestruímos. Penso também que Freud tinha a convicção de que o que acontecia na realidade social já estava no psiquismo. Isto é apaixonante. E tinha a convicção de que o que ele mesmo dizia era revelador do inconsciente, e apenas traduzia, e que a realidade se passava como no inconsciente. Isto não é verdade, mas quanta audácia!
A senhora aponta como uma das grandes forças de Freud a criação de mitos.
Outra audácia sua foi a de fundar uma ciência fundada nos mitos, na racionalidade do estudo dos mitos. Cada livro de Freud provocou debates no mundo inteiro. Quando ele publica “Totem e tabu”, que vai na contracorrente da antropologia moderna, o mundo acadêmico discute este ensaio completamente fora de moda. Isto significa que ele contribui com algo. Quando escreve seus três ensaios sobre a teoria sexual, em vez de fazer um tratado se sexologia, o caso de todos seus contemporâneos, ele se ocupa da teoria sexual das crianças. Para mostrar que o que se considerava como perversões não o era, e que somos todos perversos.
O que é a “revolução simbólica” de Freud?
A lenda é a de que Freud inventou tudo, de que não deve nada a sua época. Não é verdade. Ele inventa algo da ordem que defini como revolução simbólica, remodelando as representações de sua época. Nisso ele é inovador. Quando se lê os psicólogos contemporâneos de Freud, que são válidos, sua superioridade intelectual, literária e imaginativa é evidente. A fraqueza de Freud foi a de não poder introduzir esta disciplina na universidade. E sua força foi a de ter feito um movimento. Ele não cria uma seita, mas um movimento político, revolucionário, platonista. Ele e seus discípulos têm consciência desde o início de serem portadores de uma revolução simbólica. A prova é a de que possuem a preocupação da memória e da história, contrariamente aos psicanalistas. Tinham o pressentimento de que seu mundo iria desaparecer, o que vai ocorrer primeiro com a Primeira Guerra Mundial, e uma segunda vez, com o nazismo. Aprecio nos primeiros freudianos - que se disputam todo o tempo e que admiram mas não idolatram Freud – este sentimento de que seu mundo vai perecer. Daí vem a imigração, e o fato de que se deve levar a todos os países do mundo a lembrança de Viena. O exílio de Freud, sua casa, suas coleções, é a ideia de que já que tudo vai morrer com o nazismo, é preciso transportar a memória do movimento. Arquivos, fotografias, tudo é transportado para Washington ou Londres. É um gesto incrível. Freud não crer acreditar que o nazismo vai engolir Viena. Ele sabe, mas não quer aceitar. Ele espera por Hitler, e face a essa pulsão de morte, personalizada em Hitler, recua até o momento em que é preciso partir.
Entre as ditas “lendas fabricadas”, como senhora diz, estão suposições de Freud teria sofrido abuso sexual na sua infãncia, vivido uma relação com sua cunhada, abusado ele mesmo de sua sobrinha-neta ou em seu exílio em Londres abandonado suas irmãs, depois deportadas e exterminadas pelos nazistas.
Eu não encontrei nada disso nos arquivos. O que não se sabe é como foi a vida sexual de Freud antes de seu casamento. Ele teve provavelmente a adolescência de um jovem de Viena. Não gostava de prostíbulos, do adultério. As mulheres se casavam virgens. Não se sabe o que houve antes, mas se sabe o que veio depois. Ele tinha a necessidade de ter mulheres em seu entorno. Pratica a abstinência, não quer outro filho. Sua cunhada ocupa um lugar muito particular. É uma segunda esposa não sexuada, ele mesmo o diz. Mas é preciso ser completamente louco hoje para colar retrospectivamente o que é a sexualidade atual sobre o que era naquela época. Não há verdades ocultas, mas quis invalidar os falsos rumores. Houve pessoas que negaram a existência do câncer de Freud, o que é fascinante. Ele também não recomendou a Gestapo. Desminto tudo isso. Se construiu uma máquina de fantasias, sejam negras ou douradas, sobre o personagem.
A senhora coloca Freud no mesmo estatuto de Einstein, Darwin, Marx, Sartre, Simone de Beauvoir, Hannah Arendt ou Michel Foucault: pensadores rebeldes vítimas de rumores e injustiças.
Marx se tornou um explorador de mulheres, repugnante, responsável pelo goulag. Há teorias revisionistas sobre Einstein que dizem não ter sido ele o criador da teoria da relatividade, mas sua mulher. E teria sido um pai abominável porque tinha um filho psicótico. Tudo isto não se sustenta. Sobre Darwin também se inventou muita coisa. E sobre Simone de Beauvoir ou Sartre, que foi coberto de injúrias. Foucault foi acusado de ser responsável pela transmissão da Aids, e Jacques Derrida, de nazista. Para mim tudo isto deve ser banido. São visões apocalípticas. Sobre Freud, se discutiu quem teria lhe dado a última injeção. Se pretendeu que se teria ocultado o seu uso de cocaína, o que não é verdade. Se acusou Freud de introduzir a cocaína no mundo moderno. E o Freud fascista, amigo de Mussolini? Isso nunca. Sim, ele fez uma dedicatória a Mussolini, mas é preciso contextualizar. Há frases que Freud não pronunciou e que lhe são atribuídas. Há textos interpretados de forma equivocada, sem o contexto. Há de tudo. Estranhamente, os antifreudianos radicais não criticaram o que é criticável em Freud.
Por exemplo?
Não notaram muito as errâncias de Freud. Passam seu tempo a valorizar teses aberrantes para melhor criticar Freud. Os antifreudianos radicais pensam que Williem Fliess tinha razão contra Freud. Não sou por Wilhem Reich (1897-1957) contra Freud, por Otto Gross (1877-1920) contra Freud. Não é isto que se deve fazer, mas mostrar como o próprio Freud adota teorias extravagantes. É normal que Fliess seja hoje esquecido, ele tinha um sistema de pensamento irracional, mas fascinante. Pode-se ter muita simpatia por Reich, como eu tenho,, mas a teoria do orgônio é delirante. Os antifreudianos radicais passam todo o tempo a procurar antiheróis, não usam as verdadeiras críticas que poderiam ser feitas a Freud.
A senhora vê hoje uma crise do pensamento filosófico e da psicanálise hoje na França?
Estamos numa crise de herança na França, passageira, mas numa crise europeia, mundial do pensamento. Há hoje na França uma renovação evidente da filosofia, há uma geração de 40 anos que vai ser conhecida. Há uma renovação da antropologia, da sociologia. Menos para a psicanálise, porque eles estão acantonados na clínica. Daí a importância de um retorno de um Freud histórico. Penso que saímos de um período difícil do ódio a Freud, e hoje é preciso lê-lo de outra forma, como uma necessidade para os psicanalistas. Há trinta anos, os não psicanalistas leem melhor Freud do que os psicanalistas. O que não quer dizer que sejam maus clínicos. Eles não situam Freud na cultura do tempo de Freud, e assim não sabem situá-lo em nosso tempo. “Em seu tempo e no nosso” quer dizer: Freud que se constrói em seu tempo e que nos ilumina no nosso.

ESTUDOS SOBRE O FACEBOOK TENTAM PREVER REAÇÕES DE SEUS USUÁRIOS

Enquanto algumas pesquisas associam a rede social à palavra ‘diversão’, outras mostram como as pessoas se deprimem quando seus ‘posts’ recebem poucas curtidas
POR THIAGO JANSEN
08/06/2014 6:00 / ATUALIZADO 08/06/2014 9:23

Rede social polêmica: pesquisa controversa da rede gerou críticas e acusações de usuários e especialistas - AFP


RIO - Quase 20% dos sete bilhões de habitantes da Terra estão por lá. O Facebook virou a grande praça do nosso tempo, um lugar de encontro e relações sociais que atrai crescente atenção do mundo acadêmico, de olho na compreensão dos efeitos que essa enorme interação exerce sobre o comportamento humano. São tantos os estudos focados na rede criada pelo americano Mark Zuckerberg quantos as conclusões a que eles chegam. Mas duas ideias perpassam todos eles: é difícil entender esse fenômeno totalmente, assim como, a depender de grande parte dos resultados a que chegam, é quase impossível ser feliz no Face.
"Efeitos" das redes sociais sobre os usuários intriga os cientistas - Arte de André Mello
Vejamos: mês passado, a universidade australiana de Charles Sturt, por exemplo, revelou que quanto mais uma mulher publica informações sobre si na rede, mais solitária ela se sente. Ao mesmo tempo, a também australiana Universidade de Queensland publicou duas pesquisas que cravam: a falta de acolhimento e aprovação ao que publicamos — em outras palavras, poucas curtidas aos nossos posts e fotos — nos deixa verdadeiramente angustiados e infelizes. No Reino Unido, estudiosos da Universidade de Stratchclyde que analisaram o comportamento de 881 jovens com idade média de 24 anos concluíram que quanto mais tempo eles passaram no Facebook, pior se sentiram. É que, embora muita gente costume retocar suas fotos com programas de edição ou, ao menos, escolher as melhores imagens para postar, acaba se esquecendo de que outros também o fazem e se deprime ao se deparar com a beleza alheia.
O diretório do instituto americano Pew Research Center, que agrega pesquisas, apresenta mais de 1.200 resultados quando se digita a expressão rede social. Se a busca é por Facebook, são mais de 1.600 entradas. Nem todo esse universo, claro, é deprê. Um trabalho da Universidade de Connecticut (EUA) de 2012 “revelou” que o Facebook é um nome associado à diversão. E, no ano passado, a prestigiosa Universidade de Cambridge, na Inglaterra, sugeriu que pessoas que curtem batata frita no site tendem a ser mais inteligentes (?!), entre inúmeras outros “estudos” de aplicabilidade duvidosa e resultados insólitos.
A assistente administrativa Larissa Diniz, de 27 anos, corrobora algumas pesquisas e discorda de outras. “Flodadora” (atualizadora quase compulsiva) com orgulho, ela publica diversos selfies por dia e vive compartilhando músicas, pensamentos, reclamações. Admite que se entristece se não tem a resposta esperada.
— Meu perfil funciona como um diário. Estou constantemente pensando no que vou postar, sempre ligada. Fico muito frustrada quando não reagem ao que eu posto. Por outro lado, se os amigos interagem bastante, meu humor melhora — afirma. — Mas não concordo com a pesquisa que diz que quem posta muito é mais solitário. Claro que, em um domingo chuvoso, sozinha em casa, vou postar mais do que o normal. Mas quando estou na noite com os amigos também publico um monte de fotos.
Coordenador de mídias sociais, Renato de Andrade tem mais de três mil amigos no Facebook e 10 mil seguidores no Twitter e faz do ofício seu passatempo favorito: conectado quase o tempo todo, ele publica em média cinco postagens diárias em sua página pessoal e gosta de provocar seus seguidores com perguntas inusitadas, estimulando interações. O carioca de 30 anos é outro que admite se deixar afetar pelas redes.
— Gosto de interação, de ver o que a galera está pensando, então também fico frustrado quando coloco perguntas e ninguém responde — diz Renato. — Agora, acho que, na verdade, todo mundo é um pouco solitário, mas cada um encontra a sua forma de lidar com isso. Nesse sentido, o Facebook é até positivo, porque dá a quem é tímido mais possibilidades de fazer amigos.
Pesquisas ajudam em tratamentos
Usuário ativo do Twitter, com mais de 52 mil seguidores, o designer criador do popular site de humor “Jesus Manero” Victor Berriel, de 25 anos, diz observar o impacto das redes na vida das pessoas diariamente, inclusive na sua:
— Vejo muita gente se comportando de formas que normalmente não faria se não tivesse conta no Facebook. Com as redes sociais, qualquer pessoa pode projetar o que quiser, e muitas moldam suas atitudes pelo modo como querem ser vistas.
Colaboradora do Grupo de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, a psicóloga Sylvia van Enck vê com naturalidade a multiplicação das análises sobre o comportamento humano nas redes. Para ela, isso é apenas um reflexo do peso que sites como o Facebook têm na vida das pessoas:
— Somos diretamente afetados pelas dinâmicas das redes sociais. O nosso trabalho no Instituto de Psiquiatria da USP acaba se respaldando muito no que é publicado em termos de estudos sobre comportamento, tecnologia e internet. A partir deles, buscamos ajudar aqueles que têm a vida prejudicada pelo uso desmedido da rede. As pesquisas são o ponto de partida para um resultado prático.
Referência quando o assunto são redes sociais e internet brasileira, a cofundadora do site YouPIX Bia Granja diz que já foi mais empolgada com as pesquisas acadêmicas sobre o comportamento dos usuários online. Os resultados contraditórios e a maioria de conclusões negativas a levaram a observá-las mais como meras curiosidades:
— Fico ressabiada, porque as pesquisas muitas vezes parecem enviesadas. Muita gente também passou a vê-las com restrição. Tanto que a expressão “estudos apontam” virou piada na rede.
As piadas com as pesquisas acadêmicas ganharam terreno fértil nos próprios objetos de estudo delas. Há muitas páginas no Tumblr e no Facebook, além de perfis no Twitter, que ressaltam o humor involuntário dos trabalhos acadêmicos por meio de paródias e compilações de resultados absurdos. No Twitter, um dos mais populares perfis do tipo é o Estudos Apontam (@ApontandoEstudo), com mais de 45 mil seguidores. Nele, acumulam-se pílulas de irreverência, como “Estudos apontam que é possível ir pra academia e não tirar foto” ou “Estudos apontam: A bunda do Hulk tem vida própria”.
Para a psicóloga Mariana Matos, pesquisadora das redes sociais, pode-se depreender alguns aspectos importantes sobre a personalidade e os maneirismos das pessoas pelo uso que elas fazem das redes. Mas com parcimônia.

— Sem dúvida, os usuários acabam mostrando aspectos seus nas redes, seja na maneira como se projetam, seja na forma como interagem. Mas isso acontece em diferentes espaços da vida não digital também: não somos no trabalho as mesmas pessoas que somos com amigos — compara Mariana. — Não dá para resumir as pessoas às suas versões digitais. Não é porque alguém vive publicando selfies que é necessariamente inseguro. As pessoas devem ter noção de que as pesquisas envolvem fatores culturais e metodológicos particulares. Não se pode interpretá-las como verdade absoluta. O comportamento do ser humano não é uma ciência exata.
‘Tentativa de popularizar o conhecimento’
Escritora e especialista em redes sociais, Rosana Hermann diz ver no crescente interesse do meio acadêmico uma tentativa de popularizar o conhecimento, com produções que digam respeito a um público amplo. Apesar disso, para ela há um evidente desprezo dos pesquisadores pela dinâmica da internet — daí o negativismo predominante:
— Há pesquisas que são pura e simplesmente negativas. Geralmente são aquelas genéricas e reducionistas “pessoas que usam tal rede são assim”. Os estudos estão aumentando, mas ainda há muito rancor sobre o meio digital. E, com isso, uma grande falta de percepção sobre o que realmente está acontecendo nele. (Colaborou Marina Cohen)

PROUST E O AMOR

Francisco Bosco

Emmanuel Behr, amigo de Proust, disse sobre ele: 'Que ninguém jamais se comunica com ninguém não era para Proust uma hipótese provável, mas um artigo de fé'

Mais de um leitor já observou que o volume 5 da “Recherche”, “A prisioneira”, poderia, com mais forte razão, chamar-se “O prisioneiro”. Nessa versão amorosa da dialética do senhor e do escravo, o amante ciumento, ao procurar controlar todos os movimentos — físicos, desejantes e efetivos — de sua amada, torna-se ele mesmo cativo de um labirinto psíquico sem saída, onde é o próprio desejo de verdade que não cessa de engendrar suspeitas, que por sua vez se multiplicam ad infinitum, e acaba, paradoxalmente, por definir a experiência amorosa em jogo como a de uma grande mentira. Que não se pode deduzir, dessa experiência particular, uma verdade geral sobre o amor (o que quer que seja isso), é o que procurarei indicar aqui.
Emmanuel Behr, amigo de Proust, disse sobre ele: “Que ninguém jamais se comunica com ninguém não era para Proust uma hipótese provável, mas um artigo de fé”. Com efeito, essa impossibilidade de comunicação atravessa e define a experiência do narrador com sua amada, Albertine (a Capitu da literatura francesa). Durante todo o tempo, o narrador lhe esconde suas verdadeiras (até onde ele mesmo pode conhecê-las) ideias e intenções, procurando com isso fortalecer sua posição no xadrez amoroso, e considera que, reciprocamente, Albertine também não cessa de lhe esconder a verdade. Esse desencaixe se intensifica a ponto de engolir toda a experiência. A relação amorosa entre o narrador e Albertine se revela uma ausência de relação, no mesmo sentido em que Lacan dizia não haver relação sexual: ambos agem apenas de modo a instrumentalizar o outro para servir a seu próprio narcisismo ou demais interesses individuais (lembrando que só conhecemos Albertine pela visão do narrador).
A se acreditar no amigo de Proust, devemos submeter o “artigo de fé” do grande escritor ao crivo da máxima nietzschiana, aqui adaptada: todo juízo sobre o amor é antes um juízo que o amor faz sobre quem o profere. Assim, a impossibilidade de comunicação de que aqui se trata seria antes consequência de uma certa forma de experimentar o amor (determinada por lógicas nada racionais) do que um juízo racional e desinteressado sobre ele. Que forma é essa, e por que ela leva ao narcisismo entrincheirado do narrador e de sua amada?
O narrador é possuído por um desejo de controle da totalidade das experiências de sua amada. Ele condiciona a verdade da relação à revelação da verdade absoluta sobre o outro. Desejando conhecer todas as experiências dela, e ao mesmo tempo não admitindo que ela possa ter experiências que lhe desagradem (moral ou narcisicamente), acaba por condená-la, seja à mentira (que o torna prisioneiro de ciúmes infinitos), seja à anulação de sua individualidade (que torna prisioneira de seus ciúmes e, dialeticamente, esvazia o desejo do narrador, enfastiado com um ser reduzido a reflexo de suas próprias vontades). Estabelece-se assim um sistema onde o desejo inquisitorial de confissão engendra mentiras exponenciais, que supostamente provam a verdade da impossibilidade da comunicação no amor, quando são apenas o efeito de determinada posição imaginária. Essa posição imaginária é a de um ciúme insaciável que só encontra algum repouso nos instantes fugazes em que não se sente ameaçado pela alteridade do outro. Não é por acaso que o narrador se debate sem se decidir se afinal ama Albertine, pois esse amor só se manifesta negativamente, quando a alteridade desperta seus ciúmes.
Há em tudo isso um aspecto que talvez seja indissociável do amor (pois o seria de qualquer relação humana). Refiro-me à gangorra imaginária que faz com que a admiração pelo outro tenda a produzir indiferença neste, e vice-versa, fazendo da relação amorosa um jogo tenso em que se alternam as posições do amado e do amante, e em que desejo e amor são variáveis inversamente proporcionais — mas onde, como na gangorra real, certo equilíbrio, embora tenso e difícil, não é impossível. Mas se a dimensão imaginária é indissociável do amor, este não é redutível a ela. Ao contrário, talvez só se possa falar em relação amorosa quando a alteridade do outro é acatada e sobre ela se constrói uma obra a dois; quando a alteridade já não está mais dissolvida no Um da paixão, tampouco caçada a todo custo pelo desejo ciumento de controle.
Em “A prisioneira”, é um mal-entendido sobre a verdade — condicionar a verdade do outro (logo da relação) ao conhecimento e controle absolutos sobre ele — que acaba por condenar tudo à mentira.

A PERIGOSA INDÚSTRIA DAS DOENÇAS MENTAIS

Diretor da revisão do DSM IV, em 1994, o psiquiatra Allen Frances alerta que aumento de diagnósticos de transtornos mentais está engolindo a normalidade
POR FLÁVIA MILHORANCE
17/10/2014

Allen Frances alerta que expansão da fronteira psiquiátrica está levando a aumento de diagnóstico e engolindo a normalidade - Divulgação / Angelika Warmuth


Traduzido para 12 idiomas, mas ainda em busca de editora no Brasil, o livro de Allen Frances “Saving Normal” (Salvando o normal, em tradução livre) questiona o manual que é referência para psiquiatras do mundo no diagnósticos de transtornos mentais. Para Frances, dificuldades diárias ganharam nomes de distúrbios no DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Como resultado, uma legião de pessoas usa remédios sem necessidade, tendência que, ele diz, tem influência da indústria farmacêutica.
O DSM 5, mais recente edição da “bíblia da psiquiatria”, é cercado de polêmicas, e uma delas veio do Instituto Nacional de Saúde Mental (NHI), um dos principais órgãos norte-americanos, que decidiu excluir de financiamentos as pesquisas que se baseiam nas categorias do guia. Especialistas como Frances — diretor da revisão da edição anterior a esta, o DSM IV — dizem que os critérios de diagnósticos são “frouxos” e podem sofrer pressões de setores interessados.
O senhor acredita num retrocesso do DSM 5 em relação do DSM IV?
Houve pouca controvérsia no DSM IV (1994) porque ele rejeitou 92 de 94 sugestões de novos diagnósticos. O DSM 5 (2013) é muito polêmico porque abriu as portas para a irresponsável abundância de diagnósticos e de venda de remédios.
Na sua opinião, novos transtornos foram incluídos sem necessidade no DSM 5? De quem é a responsabilidade?
Sim, estamos transformando os problemas diários em transtornos mentais e tratando-os com comprimidos. Parte do problema é que o sistema de diagnóstico é muito frouxo. Mas o principal problema é que a indústria farmacêutica vende doenças e tenta convencer indivíduos de que precisam de remédios. Eles gastam bilhões de dólares em publicidade enganosa para vender doenças psiquiátricas e empurrar medicamentos.
Quais seriam os exemplos desses excessos do manual?
Uma tristeza normal se tornou “transtorno depressivo maior”; um esquecimento da idade é “transtorno neurocognitivo leve”; birras usuais do temperamento infantil se tornam “transtorno disruptivo de desregulação do humor”; exagerar na comida virou “transtorno da compulsão alimentar periódica”; uma preocupação de um sintoma médico é “transtorno de sintoma somático”; e em breve todos terão “transtorno de déficit de atenção e hiperatividade” (TDAH) e tomarão estimulantes.
Quando o psiquiatra Leon Eisenberg, considerado “o pai do TDAH”, se deparou com o aumento do diagnóstico nos EUA, ele o chamou de “doença fictícia”. Qual é a sua opinião?
O TDAH ocorre em 3% das crianças, mas é diagnosticado em 11% de americanos e, ridiculamente, em 20% de adolescentes homens. O remédio pode ser bom para poucos e terrível se usado em muitos.
Quão profundo pode ser o impacto de remédios desnecessários no comportamento desses indivíduos?
Fazemos um vasto e descontrolado experimento em nossas crianças, banhando seus cérebros imaturos com produtos químicos fortes sem saber seus efeitos de longo prazo. Pais precisam se tornar consumidores informados e proteger seus filhos.
A indústria farmacêutica exerce alguma pressão sobre o grupo de trabalho responsável pela revisão do DSM?
Ela espera às margens e não faz pressão na revisão de diagnósticos. Mas tem financiamento ilimitado e os melhores cérebros publicitários dedicados a difundir a desinformação de que transtornos psiquiátricos são subdiagnosticados e fáceis de diagnosticar. E apresenta comprimidos como solução.
Temos dados científicos suficientes para embasar os diagnósticos?
Aprendemos muito sobre o funcionamento do cérebro, mas até agora isso não ajudou um único paciente. O cérebro é a coisa mais complicada que existe. A passagem da ciência básica para a prática clínica é dolorosamente lenta, e não podemos nos apressar na psiquiatria. Ainda não temos testes biológicos para definir doenças mentais, mas isso não significa que não podemos ajudar aqueles que realmente precisam.
Como balancear a crítica ao excesso de diagnóstico sem elevar o preconceito com os doentes?
Enquanto tratamos em excesso os que não precisam, vergonhosamente deixamos os doentes de verdade ao léu. Temos ferramentas para ajudá-los a ser produtivos e ter dignidade.
Quais são as consequências disto?
Os gravemente doentes terminam na rua, em prisões ou hospitais psiquiátricos inadequados. Precisamos focar nos que estão doentes e proteger os que acham que estão. Nos EUA, pessoas morrem mais por remédios prescritos do que de drogas ilícitas.
Que medidas sociedade, cientistas, autoridades e indústria farmacêutica poderiam tomar?
Apertar o sistema de diagnóstico; recapacitar médicos para os riscos, e não apenas os benefícios de remédios; eliminar a propaganda de companhias farmacêuticas. É uma batalha de Davi contra Golias, mas foi bem-sucedida contra a indústria do tabaco.